sábado, 27 de agosto de 2011

CONTOS FANTÁSTICOS

DESATA-ME 
      Sou o príncipe encantado, o sonho de todas as princesas. Mas escolhi amar apenas uma, a bela donzela que resgatei da torre mais alta após enfrentar o mais temido dos inimigos.
      Vivemos felizes para sempre. Moramos em um castelo luxuoso, o centro de um reino pacífico e abençoado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Reservei para minha senhora o aposento mais elegante, com móveis refinados, cortinas de seda e tapetes brancos trazidos pelos cruzados do Oriente distante. À sua disposição, os vestidos mais caros e as joias mais preciosas. Tudo para realçar sua beleza delicada.
      Durante o dia, anseio loucamente pelas horas que me unem à minha senhora e nos tornam apenas um. Todas as noites eu a visito no quarto para cumprir um ritual de luxúria, condenado por religiosos que temem o apetite da carne. Para mim, no entanto, este momento unifica o profano e o sagrado.
      Talvez me consideres um herege, uma criatura execrável, merecedora de arder no mais profundo inferno. Tua opinião não me afeta. Estou aos pés de minha senhora, reverencio sua divindade, sua perfeição... E querrei muit’i loar mia senhor, a que prez nen fremusura non fal(*). Não existe neste mundo de Deus ninguém igual a ela!
      É noite mais uma vez. Eu a procuro, como faço nos últimos sete anos. Ela me aguarda, dócil, em pé ao lado do leito. Meus braços ansiosos a seguram no colo e a conduzem para a tina de água morna, próximo à janela mantida fechada. Sempre a banho com carinho. Acompanhei cada etapa de amadurecimento de seu corpo, a transformação de uma criança de 7 anos numa quase mulher de 14.
      Devo confessar que sinto falta de sua aparência infantil, da pele tenra e inocente, do peito liso, do púbis ainda desnudo... Meu prazer, naqueles tempos, era inigualável. Não me culpes se a saudade alimenta o desejo ardente de reviver esta experiência. Jurei ser fiel à minha senhora até a morte. Portanto, nenhuma tentação, por mais diabólica que se revele, poderá me desviar do caminho santo que dedico somente à minha senhora.
      Quando minhas mãos se cansam de acariciar o corpo molhado, sem mais nenhum segredo a explorar, eu o retiro da tina e o envolvo na toalha para secá-lo. Minha senhora aceita o suave vestido branco que escolho e, imóvel, como ela sabe que prefiro, apenas fecha os olhos. Eu a visto, tomando cuidado para não enganchar a renda da saia muito longa na corrente de ferro que prende seus tornozelos ao nosso leito.
      A seguir, encontro o pente para cuidar de seus cabelos. Admiro o rosto maravilhoso, de traços finos e elegantes, sem marcas. Há muito minha senhora aprendeu que seguir meus conselhos significa se manter a salvo de pancadas e seus desagradáveis hematomas. Orgulho-me de cumprir o direito que me foi dado como homem e senhor. Minha amada conhece seu lugar.
      Seus cabelos, tão brilhantes e ondulados, espalham-se sobre os ombros até a cintura. Faço um trabalho perfeito, sem disfarçar o fascínio pela maciez dos fios dourados. Minha senhora continua a esconder de mim seus olhos azuis, um tom celestial capaz de emudecer os anjos em seus cantos de louvor a Deus. Respeito sua timidez.
      Com cuidado, eu a deito no leito e me afasto. Não posso evitar minha respiração ofegante. A mais deslumbrante das princesas receberá seu príncipe encantado para um novo momento de união completa. Mais um ritual para celebrar o prazer do espírito e da carne. Aproximo-me lentamente, saboreando cada passo, cada gesto. Meus dedos trêmulos pousam sobre os pés de minha senhora, ultrapassam a corrente nos tornozelos e continuam subindo, à procura do paraíso. Para meu total desespero, não o alcançam.
      Há sangue entre as coxas de minha senhora. O sangue amaldiçoado que toda menina carrega ao se tornar mulher, comprovando sua culpa desde o princípio dos tempos, quando a serpente convenceu a primeira filha de Deus a traí-Lo... Minha senhora me trai ao expulsar de seu ventre aquele sangue pecaminoso. Traição e culpa a tornam impura diante de Deus! A inocência se perde para sempre...
      Minha fúria não a perdoa. Consciente de que o poder se concentra em minhas mãos, capturo o pescoço frágil, pronto para fazer cumprir a justiça. Ela se debate para escapar. Fortalecido pela vontade divina, aperto seu pescoço com mais força. Não haverá misericórdia para um verme rastejante! Ela se retorce, enlouquecida, espuma a baba nojenta das criaturas inferiores e, por fim, se entrega à morte como punição pelo pecado original.
      Não posso evitar o vazio que se apossou de mim após a morte da mulher. Talvez entendas como me sinto. Um demônio com rosto angelical enganou meu coração, despertando a dor e a mágoa. Perdi uma senhora que nunca foi minha.
      Cavalgo, solitário, pelas estradas de terra que cortam meu reino. Atravesso bosques e charnecas, cruzo aldeias distantes, perco-me entre pessoas que não imaginam o peso do sofrimento em minha alma.
      Hoje, porém, Deus se apieda de mim. E eu a vejo, no ponto mais alto da colina, a mais bela entre as donzelas. As batidas aceleradas de meu coração me contam o que já sei. Finalmente encontro minha verdadeira senhora! E ela é completamente o oposto da ingrata que enganou minha boa fé.
      Contemplo seus cabelos ruivos e longos, o formato liso de seu corpo infantil e puro. De agora em diante, seu sorriso inocente habitará meus sonhos e minha realidade. Preencherá noites de um novo ritual que celebrará o prazer da carne e do espírito...
      Entretanto, um ogro perigoso a aprisiona. Abaixo o elmo de minha armadura, tiro a espada da bainha e, destemido, avanço com meu cavalo altivo para aniquilar o monstro. Ouço o grito de pânico da donzela, o que fortalece minha coragem em salvá-la do perigo.
      A lâmina da arma, sem hesitar, arranca a cabeça do ogro. Esta voa para longe e aterrissa rolando até bater contra as raízes de um carvalho. Assustada, a donzela foge de mim, sem reconhecer o príncipe encantado que veio resgatá-la. Eu a compreendo. Sua sensibilidade foi ferida pelo ataque violento, porém necessário.
      Disparo o cavalo em seu encalço até que, enfim, a tiro do solo para aconchegá-la contra mim. Em breve, quando estivermos a sós em meu castelo, irei banhá-la com cuidado, pentear seus cabelos e deitá-la no leito para consumar nossa felicidade.
      Furiosos, os aldeões acenderam tochas e, apesar da escuridão da noite, invadiram a floresta escura ao sul do vilarejo. Fariam tudo ao seu alcance para resgatar a menina de 7 anos, filha do camponês decapitado no final da tarde, quando atravessava a colina em direção à sua casa.
      O ferreiro, distante demais para interferir, assistira ao crime e tinha uma descrição completa do assassino. Foi ele que liderou os aldeões, incentivando-os a enfrentar o medo da noite para salvar uma criança indefesa.
      — E se fosse vossa filha? – dissera aos homens. – Não temos ninguém que nos proteja desses malfeitores! Se não protegermos nossas famílias, o que será de nós?
      — Deus guiará nossos passos! – reforçara o taberneiro.
      A Lua Cheia facilitou a perseguição, espantando as trevas para que o grupo seguisse seu destino. O jovem menestrel, de passagem pelo vilarejo, foi o primeiro a encontrar rastros de ferradura na terra ainda úmida. Chovera bastante na véspera.
      — Oliana, onde estás? – gritou o ferreiro, pela milésima vez.
      Seu chamado ecoou entre as árvores, carregado pelo vento frio. O grupo se afastara bastante do vilarejo em suas várias horas de caminhada. Não demoraria a amanhecer.
      — As marcas continuam por ali... – disse o menestrel, indicando uma trilha entre a vegetação espessa.
      O ferreiro liderou o grupo. Andou por muito tempo antes de avistar um barranco. Logo abaixo, um casebre praticamente se misturava ao cenário de mato, pedras e limo. À esquerda, um pangaré magricela cochilava, amarrado a um arbusto.
      — Moramos tão perto, mas nunca suspeitamos da existência deste lugar – comentou o taberneiro, em voz baixa.
      Um calafrio tentou corroer a coragem do ferreiro. Ele, porém, não se deixou abater. Deslizou seus pés no barro para descer até o casebre, liderando os aldeões que enfrentariam o terrível malfeitor. Tinha certeza de que a pequena Oliana era mantida como refém entre as tábuas podres da construção.
      Não precisou de nenhuma força extra para arrombar a porta. Apesar de calejados com a opressão dos senhores de terras e a morte provocada por doenças e pela violência do dia-a-dia, os aldeões não estavam preparados para lidar com o cenário estarrecedor que se revelou à sua frente.
      A imundície imperava entre dejetos, restos de alimentos, ossos humanos e o cadáver inchado de uma jovem de cabelos loiros. No fundo do casebre, um amontoado de trapos fazia as vezes de cama. Despida, a pequena Oliana chorava e tremia de frio dentro de uma bacia enferrujada, presa pelas mãos grosseiras de um homem barbudo e desdentado. A parte de cima de seu corpo estava coberta por uma armadura amassada, velha demais para protegê-lo durante um combate. Da cintura para baixo, ele estava nu, o que evidenciava sua excitação pela criança. A espada, ainda suja com o sangue do pai de Oliana, jazia no chão, perto da bacia.
      — Ele prende a menina pelos pés com uma corrente... – murmurou o menestrel, logo atrás do ferreiro. Estava chocado demais para enxergar os detalhes realmente hediondos daquela situação grotesca.
      O ferreiro, sem perder mais tempo, apontou a tocha em chamas contra o malfeitor, direcionando o ódio, o ultraje e a sede de vingança de seus companheiros..

 
       Os dragões me cercam em meu próprio castelo. Suas rajadas de fogo querem me atingir na luta insana que travo para proteger a bela donzela. Ela chora, temendo pelo nosso futuro. A espada, uma companheira de tantas batalhas, agirá para nos defender até o fim.
      Juro para ti que não tombarei antes de levar comigo a senhora que reina absoluta em meu coração. Então, quando estivermos juntos na eternidade, serei seu único trovador.
       E mais vos direi en: tanto a fez Deus comprida de ben que mais que todas las do mundo val.(**)
FIM
Fantasia / Terror
Escrito por Helena Gomes

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